FÉ
E RESSURREIÇÃO
por
Christian David Soares Bitencourt
WEISER,
A. O que é milagre na Bíblia. São Paulo:
Edições Paulinas, 1978. 189p.
Muito mais do que sua historicidade ou explicação,
o que há de importante nas narrativas de milagre é
a relevância ética, prática e espiritual
que podemos delas extrair. Este é o ponto de vista de
Alfons Weiser que será o pano de fundo de toda a sua
obra O que é milagre na Bíblia.
A
obra é um passeio pelas formas de narrativas de milagre
do NT, levando-se em conta as comparações com
narrativas extrabíblicas da época neotestamentária.
Um outro importante pressuposto para entendermos sua percepção
dos milagres é revelado de forma clara ao término
da obra de Weiser: os milagres devem ser vistos sob a ótica
pascal, é a Ressurreição que clarifica
e dá sentido aos sinais miraculosos de Cristo.
Antes da análise propriamente dita das formas literárias,
o autor estabelece algumas comparações entre definições
de milagre para a antigüidade e para o mundo atual. Enquanto
a ênfase para os antigos estava na experiência do
divino, para o homem moderno a ênfase está na excepcionalidade
dos sinais. Mais clara ainda é a percepção
de que, nas narrativas bíblicas, a experiência
do divino aponta para Jesus: a salvação fruto
de um Deus atuante na história (p. 22). O estudo dos
milagres do NT deve levar em consideração que
o alvo dos autores bíblicos não é a objetividade
dos relatos, e, sim, sua interpretação teológica
(p. 26).
Os
fatos miraculosos narrados no NT têm por fim identificar
em Cristo a chegada do Reino de Deus. Weiser é esclarecedor
em sua análise de Lc 11.20 (p. 33): o poder que Jesus
tem de operar milagres é sinal de que o Reino de Deus
já começou no Messias, fato que será consumado
na morte e ressurreição de Cristo, o que denota
uma interpretação teológica pós-pascal
dos autores do NT.
A
análise feita por Weiser das narrativas de milagres de
cura leva em conta a estrutura das narrativas helenísticas,
compostas de: natureza da enfermidade; intervenção
curativa; e constatação dos efeitos da cura (p.
41). Esta mesma estrutura encontra-se no NT, porém descrita
de formas diferentes pelos quatro evangelistas. Daí infere-se
que as narrativas têm objetivos teológicos, onde
cada autor vai narrar os feitos acentuando as matizes que consideram
principais. Toda esta manipulação das fontes não
significa o fim de um núcleo histórico das narrativas
neotestamentárias (ainda mais se levarmos em conta a
comparação com os evangelhos apócrifos,
p. 50), mas, sim, uma ênfase muito maior no significado
teológico que as curas podem ter.
A
análise a partir de exemplos de narrativas de cura do
NT possibilita chegarmos a conceitos importantes como tópica
(local específico de certas estruturas de narração,
p. 59) e apotegma (estilo de discurso didático onde o
clímax de uma narrativa está numa sentença
interrogativa ou negativa, p. 70). Um exemplo de apotegma é
o texto de Mc 3.1-6 (Mt 12.9-14), sobre uma cura no sábado.
A pergunta correta a ser feita ao texto não é
sobre a historicidade do evento, e, sim, sobre a implicação
teológica do senhorio do homem em relação
ao sábado (p. 72).
Outro
exemplo clássico da influência de uma reflexão
teológica sobre a narrativa de uma cura é o texto
do cego de nascença de Jo 9.1-7. É clara a referência
à uma nova percepção mundo (simbolizada
pelo abrir dos olhos) que só a realidade da Ressurreição
pode oferecer (enquanto proposta de renascimento, p. 80).
O
passo seguinte de Weiser é uma avaliação
das narrativas de expulsões de demônios (p. 81),
onde as semelhanças com os modelos helenísticos
de narração continuam. Deve-se então procurar
as diferenças entre os exorcismos extrabíblicos
e os do NT, que se tornam claras na figura de Jesus Cristo.
A idéia neotestamentária é que os demônios
conhecem o projeto do Reino de Deus e por isso atemorizam-se
ao travar contato com o Senhor deste Reino (p. 93). A expulsão
do reino das trevas feita por Jesus significa a instauração
do Seu Reino.
A
análise, sem dúvida, mais interessante desta parte
da obra é a que se refere a cura do possesso de Gerasa
(Mc 5.1-20, p. 94). Pequenas observações de alguns
dos maiores exegetas do NT demonstram o “escândalo”
(p. 96) e o espanto que esta narrativa provoca. Há uma
junção feita por Marcos no contexto do possesso
de vários elementos característicos da impureza
pagã: os gentios, os porcos e os cemitérios são
impuros na perspectiva judaica, e todos esses elementos estão
presentes na narrativa . Ao concluir seu texto com a proclamação
feita pelo homem curado, Marcos propõe a proclamação
da verdade cristã também à comunidade gentílica
(p. 104).
Percebe-se
a indecisão (imprecisão talvez seja o melhor termo)
típica da obra de Weiser quando vai dissertar sobre a
pessoalidade do Mal. O autor não se manifesta (como em
outras partes do texto) diretamente a respeito da historicidade
dos eventos miraculosos do NT, mas permite-nos entrever uma
disposição a encarar o mal como pessoal em relação
às pessoas que o praticam, e não a seres que estão
circunscritos a um patamar mitológico.
Os
assim-chamados “milagres no domínio da natureza”
(p. 109), analisados no capítulo V, não têm,
como os outros, objetivos de explicação científica,
e, sim, uma relação com a salvação
dos homens. Weiser percebe na narrativa de Mc 6.45-52 (quando
Jesus caminha sobre as águas) influências de modelos
de epifanias véterotestamentárias. A referência
à manifestação de Deus no AT como uma passagem
é fundamental para percebermos a comparação
teológica feita por Marcos, na narrativa, entre Deus
e Jesus, que “queria passar adiante deles” (p. 114).
Mas se o texto analisado compara Jesus a Iahweh, que poder daria
ousadia aos judeus evangelistas de realizar tal fato? Com certeza,
a Ressurreição. Assim, mais uma vez entendemos
a narrativa como um reflexão teológica pós-pascal
feita intencionalmente pelo autor.
A
percepção de que o texto de Marcos é uma
reflexão teológica e a escassez de narrativas
do mesmo tipo acabam por dar a Weiser uma dúvida quanto
a historicidade de tais milagres da natureza. “É
bastante saber”, nos dizeres de Weiser, que tais narrativas
estão fundamentadas em dois grandes fatos históricos:
a vida e atuação do Jesus histórico e a
experiência da Ressurreição (p. 123).
Outra
análise recheada de paralelos helenísticos e dúvidas
históricas é a com relação às
narrativas de ressurreição de mortos. São
apenas três relatos de ressurreição tendo
Jesus como agente: a filha de Jairo, o jovem de Naim e Lázaro
(p. 124).
Quando
se depara com a narrativa de Lázaro, percebe-se que o
objetivo maior do autor é mostrar Jesus Cristo como a
fonte da vida. Isto está expresso em máximas como:
“Eu sou a ressurreição e vida”. Desse
modo a narrativa está subordinada à reflexão
teológica que exprime Cristo como a “Ressurreição
e a Vida” (p. 130).
Mais
uma vez estes dois fatores (a raridade de narrativas e o objetivo
teológico dos relatos) levam Alfons Weiser à improbabilidade
de serem históricas as ressurreições narradas
nos evangelhos, resguardando-se, é claro, a Ressurreição
de Cristo (que ele diz justificar por outros argumentos, mas
não os cita, p. 138).
Se
as narrativas de ressurreição são frutos
do pensar teológico pós-pascal a respeito de Cristo,
que dizer dos milagres concomitantes? Estes são os milagres
que acontecem não por ação direta de Cristo,
mas em relação ao Seu ministério (p. 139).
Têm uma clara intenção de mostrar a importância
divina dos eventos relacionados a Cristo. Assim, por exemplo,
as referências tipicamente apocalípticas (terra
tremendo, rochas fendendo-se e túmulos abrindo-se) têm
por objetivo interpretar a morte de Cristo como o início
do final dos tempos (p. 147).
Após
um julgamento dos relatos extrabíblicos de milagres e
comparação com as narrativas do NT (pp. 154-162),
Alfons Weiser vai concluir sua obra com a perspectiva que sempre
defendeu nas entrelinhas do livro: é a Ressurreição
de Cristo quem interpreta os milagres neotestamentários
(p. 165). Mais do que isso, Weiser surpreende ao assumir uma
posição um tanto conservadora, aceitando a historicidade
da cura de doentes e possessos (p. 166). Porém, depreende-se
de seus argumentos, que tais fenômenos eram comuns de
sua época, e, na maioria dos casos, não passavam
de imprecisão científica. São estas possibilidades
históricas que vão fortalecer a historicidade
da Ressurreição de Cristo.
Na
verdade, Weiser assume todos os riscos de uma crítica
piedosa e sincera. Questiona a todo o momento a historicidade
dos eventos narrados, mas rende-se - em alguns casos - a sua
evidência em prol do Ressuscitado. Utiliza magistralmente
das ferramentas do crítica literária para nos
mostrar que os milagres da Bíblia não devem ser
entendidos como portadores de sentido em si mesmo, mas como
sinais da fé na Ressurreição, a abertura
para uma nova vida.
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