O
SEGREDO DO REINO
Numa
certa paróquia católica do Cosme Velho, no Rio
de Janeiro, há um trabalho interessante da Pastoral da
Juventude. Tomei conhecimento da sua existência através
de um programa da TV Educativa. Os padres responsáveis
realizam encontros regulares com os adolescentes e jovens da
comunidade e, em cada um desses encontros, há uma tarefa
secreta a ser executada. Algo nos moldes dos famosos Encontros
de Jovens de nossas Igrejas, com a diferença de que -
na paróquia do Cosme Velho - as tarefas voltam-se para
a realidade concreta ao redor, como doação de
sangue, visitas a orfanatos e asilos e distribuição
de sopa para os mendigos nas ruas.
Por
mais que me esforce, não consigo recordar o nome dos
párocos, o endereço da Igreja e nem mesmo o programa
em que foi veiculado o trabalho. Porém, uma breve entrevista
com uma das adolescentes ainda está vívida em
minha memória. Perguntada sobre o que sentia ao visitar
um asilo, levando presentes e apresentando peças teatrais
para os velhinhos, a menina respondeu: “Eu sinto que faço
isso pra Jesus, e quando acaricio um desses velhinhos é
a Jesus que estou acariciando, e quando um deles dá um
sorriso é Jesus quem está sorrindo”. Emudecida
a voz com a força de um poema de Neruda, só pude
calar-me numa prece interior: “Senhor, que eu seja como
ela”.
A
menina proclamou, de forma singela e sincera, a mensagem do
Evangelho: o segredo do Reino é partilhar, e quem se
doa ao outro está se doando a Cristo. O próprio
Mestre ensinou isso como verdade escatológica ao narrar
o Juízo (Mt 25.31-46). Enquanto os justos e os injustos
perguntavam quando o Filho do Homem esteve nu, ou com fome e
sede, ou preso, que necessitasse de sua assistência, o
Rei respondia: “todas as vezes que fizestes isto a um
destes pequeninos, a mim o fizestes”. O outro, o próximo,
o que está diante de mim, é a expressão
de Jesus Cristo.
Isto
não deveria ser novidade para nós, herdeiros da
tão propalada (e mal compreendida) tradição
reformada. João Calvino tratava o pobre como o vicarius
Dei, o substituto de Deus. É lógico que nenhum
atributo pontifical passava pela cabeça do reformador
de Genebra ao fazer tal comparação, mas, sim,
a divina capacidade de se fazer presente no outro. Quando nos
dirigimos ao próximo, o fazemos na direção
do próprio Cristo. Este princípio da identificação
divina com o homem tem o seu ápice e clímax na
Encarnação. “O Verbo se fez carne e habitou
entre nós” (Jo 1.14) é a abertura de possibilidade
de salvação para o homem, além de ser um
golpe profundo nos advogados da alma em detrimento do corpo.
Quando
o Evangelho do Reino nos convida a partilhar, está dirigindo
o convite não só à alma humana, mas também
(e de forma mais clara ainda) ao corpo. É o homem total,
por completo, integral – no dizer do consenso de Lausanne
– que se vê em comunhão com Cristo na Encarnação
do Verbo. Reconhecer no outro a essência divina é
ir em direção ao Cristo, que chora, ri, briga,
acalma, nasce de Maria e morre sob o poder de Pôncio Pilatos.
Não conceber isto é insistir no docetismo –
heresia que grassou pelos campos da Igreja nos primeiros séculos
de sua existência.
Para
os docéticos o mundo caminhava muito bem, obrigado, em
sua concepção dualista do universo. Este pensamento,
originário da mentalidade grega, enxergava o mundo em
duas esferas: a espiritual e a material. Tudo que tivesse a
ver com o espírito (ou alma, como preferir), com o mundo
das idéias, o topos uranos de Platão, era almejado.
Já o relativo à matéria, ao corpo, a este
miserável invólucro da sagrada alma deveria ser
repelido. Por isso, para o docetismo, Cristo não poderia
ter se tornado homem como nós, de carne e osso. Mas,
louvado seja Deus, o Verbo se fez carne, e a exigência
evangélica de doar-se ao outro implica em fazer o bem
à alma e ao corpo do homem e da mulher.
Contudo,
de uma forma ou de outra, o docetismo parece estar infiltrando-se
novamente em nosso meio. Basta que se veja os tabus reinantes
no tocante a tudo que se relaciona com o corpo. Somente os prazeres
do espírito devem ser buscados. Em contrapartida, somente
os prazeres do corpo são vistos como possibilidades de
pecado. Tente conversar abertamente em sua Igreja sobre sexo,
sobre dançar, sobre sorver um vinho de boa cepa, sobre
ir ao cinema, ao teatro ou ao Maracanã ver um jogo do
Flamengo. Não se questiona aqui a conveniência
ou não de tais lugares e atitudes e, sim, a clara dificuldade
de se tocar em assuntos que envolvam o corpo e a realidade material.
Como relembra o teólogo Rubem Alves, a Igreja do período
patrístico dá uma resposta direta à mentalidade
docética no Credo Apostólico ao afirmar: “Creio
na ressurreição do corpo”, sem fazer nenhuma
menção à alma.
Se
não bastam as dificuldades com relação
ao corpo do indivíduo, tente discutir em sua Igreja assuntos
sobre o corpo da sociedade. Tente falar sobre política,
opções sócio-econômicas viáveis
ou ação social. Para piorar a situação,
tente relacionar esses assuntos ao Evangelho do Reino de Jesus
Cristo. Os modernos docéticos empunharão seus
vastíssimos tratados hermenêuticos, suas eminentes
teses exegéticas e suas eloqüentes sumas dogmáticas
com a finalidade de provar seu erro (ou heresia, dependendo
de sua relação com os doutores).
Mas
o segredo do Reino – partilhar – nos leva em direção
à expressão do Jesus Cristo da Bíblia,
gente como a gente, que crescia tanto em estatura quanto em
graça, que se manifestava tanto diante de Deus quanto
dos homens (Lc 2.52), que era corpo e alma. Olhar para o próximo
e nele vislumbrar o Cristo, é entender a missão
de proclamar um Evangelho total. Se pregamos a salvação
para as almas de nosso bairro e permanecemos impassíveis
às suas necessidades sociais e econômicas, anunciamos
um Cristo incompleto – da mesma forma que assim o fizeram
alguns teóricos de uma Teologia da Libertação
que somente visava o bem social, sem levar em conta a mística
do espírito.
Precisamos democratizar o espaço de nossa Igreja por
causa da missão de partilhar. Se foge à nossa
alçada ou poder, comecemos por nossa Mocidade. Se ainda
é demais, exercitemos em nós mesmos o dom da partilha.
As formas práticas de se realizar este intento são
muitas e devem ser discutidas em comunidade. Criar espaços
para cursos e discussões, criar uma ligação
com a associação de moradores, mobilizar os advogados,
médicos, psicólogos e outros profissionais da
Igreja no sentido de doarem algum tempo para o serviço
do Senhor, organizar atividades de cunho assistencial, muito
pode ser feito na caminhada em direção ao outro.
Romper
com a supremacia docética da alma não é
promover uma Igreja fria e materialista. Ao contrário,
é encontrar a expressão de Cristo muito mais perto
do que qualquer experiência mística poderia promover:
ao nosso lado, no próximo, no outro. Partilhar o que
temos com o outro é fazer coro junto ao pai Calvino,
aos justos do sermão de Jesus e à menina da paróquia
carioca: o amor ao próximo é a única expressão
visível e possível do amor a Deus (Mt 22.34-40).
Este é o segredo do Reino.
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