TEMPLO, ESTADO E PODER


por


Christian David Soares Bitencourt

VOLKMAN, Martin. Jesus e o Templo. Sinodal e Paulinas: São Leopoldo, 1992. 170p.

A tradição protestante - inicialmente na Reforma, e, mais tarde, nos movimentos de crítica literária do séc. XIX - trouxe à tona o método exegético histórico-crítico. Verificou-se, entretanto, que, apesar de envidar um esforço no sentido de conhecer o contexto histórico de quem escreve o texto analisado, este método não levava em consideração o contexto histórico de quem lia o texto. Assim, surge no nosso século - principalmente nos países ditos subdesenvolvidos, sem uma grande tradição teológica, - um movimento de leitura do texto a partir da realidade atual. Jesus e o Templo é um exemplo deste tipo de análise.

Martin Volkman assume, ainda na Introdução da obra, que a análise histórico-crítica não é suficiente, por isso trabalha numa linha de leitura sociológica do texto em questão (Mc 11.15-19), na assim-chamada “análise dos quatro lados”: econômico, político, social e ideológico. A partir destes quatro elementos, Volkman pretende chegar a uma conclusão final a respeito da relação entre Jesus e o contexto “templário” na perícope em questão.

Na primeira parte da obra, o autor introduz a questão do Templo e seus significados, concretos ou simbólicos. Num breve apanhado histórico, mostra que o Templo dos tempos de Jesus (conhecido como Segundo Templo) na verdade seria a terceira e última manifestação do culto judeu, após o Templo pré-exílico e o Templo pós-exílico - anterior a este final que é resultado de uma remodelação feita por Herodes (daí a denominação Templo de Herodes).

Apesar da grande importância que o Templo assume para os judeus, os evangelhos fazem pouca referência a esta instituição. Nas poucas vezes que Jesus é relacionado com o Templo, há uma clara oposição: seja com a imponência da obra - quando anuncia a sua destruição, seja com a movimentação ao seu redor - quando expulsa os mercadores e cambistas.

A opinião de sete comentaristas do texto analisado (Klausner, Taylor, Schillebeeckx, Schenk, Brandon, Nolan e Theissen) é apresentada na segunda parte do livro. Volkman reconhece alguns pontos em comum, como a centralidade do Templo no contexto judaico e a oposição de Jesus à atividade comercial que girava em torno dele. Mas o autor sente a falta de uma análise que leve mais em conta os contextos econômicos e políticos, sem enxergar o Templo sobre uma ótica puramente religiosa.

O terceiro capítulo é um exercício exegético de estruturação de Mc 11.15-19. O autor destrincha a análise redacional e traditiva do texto. A estrutura segue um padrão simples: ação, interpretação da ação e reação , e o bloco traditivo em que o texto se encontra é o da Paixão (apesar da discordância de João, que situa a perícope no início do ministério de Jesus). Assim, há uma clara percepção de que o autor caminha para a relação entre a morte de Cristo e sua atitude frente aos cambistas.

A “leitura dos quatro lados” é o objeto da quarta parte da obra, a maior, mais substancial e mais importante. Volkman analisa a perícope em questão a partir de quatro pontos de vistas diferentes: o econômico, o político, o social e o ideológico.
A análise econômica revela Jerusalém como o centro comercial e financeiro da região, e o Templo como maior expressão desta realidade, sendo mesmo responsável por ela.

Apesar de não ser sua prática econômica (por causa de sua situação geográfica), a agricultura faz parte do contexto social-econômico de Jerusalém, pois era extensamente praticada na Judéia e Palestina. A forma típica de atividade profissional, entretanto, era o artesanato, principalmente em virtude da demorada construção do Templo, movida por Herodes, que resultou numa valorização desde tipo de função. Muito da atividade comercial de Jerusalém gira em torno do Templo e do material usado no culto. É aí que começam a desenrolar-se as análises que terão influência na interpretação da atitude de Jesus.

A existência de cambistas no Templo tem uma explicação clara: são eles quem trocam as moedas trazidas para o pagamento dos tributos por “moedas do Templo” (a moeda tíria), o dinheiro oficial. Nessas trocas havia a cobrança de ágio, com o qual o povo já estava acostumado, que ia em benefício do próprio Templo. Assim, além dos tributos ao Templo, do material comprado para as práticas rituais, o povo ainda pagava o ágio do câmbio do dinheiro que eles mesmos levavam.

Além desse fator comercial, o Templo tinha uma função bancária: lá eram guardados, em cofres especiais, os tesouros de pessoas que queriam ver-se livres de eventuais furtos. Este mesmo Templo concedia empréstimos com taxas de juros estipuladas. Destarte, ele adquire mais este caráter puramente econômico, com um interesse claro no lucro sobre as necessidades de quem o acessa.

Martin Volkman passa então a analisar a figura dos sumos sacerdotes, enquanto agentes de administração e comando de toda esta máquina econômica. Neste momento explica-se a razão do uso plural do termo sumo sacerdote, apesar do fato de que este era um cargo exclusivo. Na verdade, os sumos sacerdotes eram um grupo dos principais administradores do Templo: o sumo sacerdote propriamente dito (líder final), o comandante do Templo, os sete vigilantes e os três tesoureiros. Somente quem estava neste ponto da hierarquia poderia almejar o posto de sumo sacerdote, e só chegavam a este posto os portadores de grandes somas de dinheiro, que eram pagas na obtenção da nomeação. Percebemos, então, que os mais altos responsáveis pela vida econômica do Templo - e, conseqüentemente, de Jerusalém e do povo - são elementos extremamente abastados , de famílias influentes e de contatos com o poder opressor de Roma, a fim de adquirir estabilidade política.

A atitude de Jesus, ao expulsar os cambistas do Templo, acusando os seus administradores de o transformarem num “covil de salteadores”, é, na visão do autor, uma acusação direta contra todo o sistema injusto e opressor estabelecido naquele local. E a conseqüência desta atitude foi o início da perseguição de Jesus por parte dos “principais sacerdotes”.

Na análise política, três grupos são destacados por Volkman como os detentores do poder: os sumos sacerdotes, os escribas e os anciãos. Os três são pertencentes ao Sinédrio, órgão máximo de administração dos judeus, composto por 70 membros (mais o sumo sacerdote) e com uma grande autonomia em relação ao governo romano - autonomia limitada, é claro, pelo próprio poder romano que era quem concedia esta autonomia.

Os sumos sacerdotes, além de detentores do poder econômico, são também representantes da aristocracia sacerdotal - o que acaba tendo uma relação lógica. O sumo sacerdote em exercício é quem preside o Sinédrio, dando à administração política uma aura de sagrado e religioso .

Os outros dois grupos dominantes são de natureza leiga. Os anciãos são os chefes das famílias mais influentes e ricas, representando assim a nobreza leiga do povo. Já os escribas são “representantes da aristocracia intelectual”, sendo os intérpretes oficiais da verdade da Lei, considerados como herdeiros legítimos dos profetas. Estes últimos são os únicos que conseguem chegar ao Sinédrio por causa do saber, e não da condição social. São eles também os únicos a restarem após a destruição de Jerusalém.

Analisando a relação entre os postos econômicos e administrativos do Estado, o autor conclui que a atitude de Jesus dirige-se não só ao poder econômico, mas também ao político. Fato claro na reação dos sumos sacerdotes e escribas de acordo com o relato do texto de Mc 11.15-19.

Quando parte para a leitura social do texto, Volkman faz uma análise marxista clássica da sociedade judaica da época. Segue primeiro a linha de Theissen ao abordar a realidade do Templo a partir do conflito cidade-campo. Ao mesmo tempo em que se vêem relacionados ao Templo (e, conseqüentemente, à cidade), os homens do campo identificam este Templo com a opressão econômica que gira em seu redor. Destarte, os movimentos revolucionários acabam surgindo desta realidade camponesa, em conflito com a cidade.

A análise marxista de Volkman se mostra mais clara em sua perspectiva dialética do conflito de classes existente em Palestina, o que acaba sendo refletido e verificado na grande metrópole, Jerusalém. O autor disseca a composição social do campo e da cidade, chegando à conclusão de que há uma disparidade enorme na pirâmide social, com uma contraposição muito clara entre classe dominante e classe dominada. Outro elemento típico desta forma de composição social é a estratificação social, com uma dificuldade enorme de mudanças de níveis sociais.

O autor analisa a opção de Jesus dentro do contexto das revoltas populares (surgidas do conflito cidade-campo, como o movimento zelote). É muito clara, para o autor, a opção pelos pobres feita por Jesus. Com isso Jesus distancia-se dos grupos sociais de elite, vendo nelas uma contestação da vontade de Javé e reprovando a “postura ético-política” de tais lideranças.

Volkman finaliza o capítulo tratando da visão ideológica do texto. Analisa então as quatro correntes ideológicas mais representativas do tempo de Jesus: saduceus, fariseus, zelotes e essênios.

Há uma concordância quase absoluta quando identifica-se os saduceus com as outras três análises do método sociológico. Os saduceus representam grande parte dos opressores econômicos, da aristocracia sacerdotal e da classe dominante de Jerusalém. Conservadores na teologia, os saduceus apontam para uma prática ritualista que faça valer o respeito pelo corpo sacerdotal - o que é claro pela sua posição social.

Os fariseus, zelotes e essênio têm origem comum: os hassidim. Essa origem os leva a ter pontos em comum no pensamento a respeito da situação vigente e da esperança messiânica, mas práticas diferentes. Os fariseus enxergavam na soberania de Javé, e no envio do Messias, a libertação dos males ético-sociais. Por isso viviam numa observância irrestrita das obrigações legais. Já os essênios criam num isolamento do mundo mau e pecador, esperando em Deus a libertação escatológica. A única abordagem prática libertacionista era a dos zelotes, que propugnavam uma libertação política através da revolta armada - o que tentaram levar a cabo por ocasião da destruição de Jerusalém em 70 d.C.

A última parte da obra de Martin Volkman, composta por dois capítulos, aborda a relação entre Jesus e o Templo a partir da análise feita e a aplicação à realidade hodierna.

A postura de Jesus tem quatro vertentes que apontam para uma mesma realidade. A primeira questão é a denúncia feita por Jesus no respeito à idolatria à Mamom estabelecida no Templo de Javé. O autor conclui que havia dois cultos em conflito no Templo: o culto do Santo dos Santos, a Javé, e o culto dos átrios, das mesas dos cambistas, da opressão financeira dos pobres, a Mamom.

A segunda e a terceira questão apontam para uma desestruturação do sistema cúltico-tributário. Jesus relativiza tanto o modelo sacrificial quanto a cobrança dos imopstos. Para Jesus, o mais importante não é fazer-se justo pela irrestrita observância dos preceitos legais, e, sim, viver sob a ótica do amor, que se expressa em direção ao necessitado e pobre.

A última vertente é a que aponta mais concretamente para a realidade final da pregação de Jesus em relação ao Templo: o anúncio profético da destruição deste Templo.

Quando Jesus propaga essa destruição e a de todos os sistemas anunciados nas vertentes acima, na verdade está propondo uma nova avaliação destas realidades: nesta nova interpretação da lei pelo amor, ele é o Templo. É nele, exemplo máximo da expressão do amor pelo pobre, que deve se basear os nossos modelos cúlticos, éticos e sociais.

Finalmente, Martin Volkman traça rumos a partir de toda a análise feita na obra para o momento atual. O Templo não foi uma instituição que ficou no passado. Suas práticas opressoras podem ser vistas ainda hoje em comunidades que usam da fé dos fiéis em seus objetivos puramente financeiros, ou inibem a participação de certos segmentos da sociedade (sejam negros, mulheres ou menos abastados) em suas lideranças ou até mesmo em suas fileiras.

A avaliação final de Jesus e o Templo é que esta obra é indispensável a qualquer pessoa interessada numa exegese séria do texto bíblico. Enxergar na Bíblia respostas para nossos questionamentos atuais é fazer com que esta Bíblia permaneça também atual e clara para o povo. E acima disso tudo, responder pelos ensinamentos de Jesus a estas nossas questões é descobrir que no Reino de Deus nenhum homem dominará sobre outro homem.

 

 

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