ESPIRITUALIDADE E LIBERDADE


Quando a gente é criança, tem algumas coisas que não entram na cabeça de jeito nenhum.

Eu me lembro, por exemplo, que, por mais que a professora se esforçasse e desse exemplos e explicasse, eu não conseguia apreender direito a diferença entre substantivos abstratos e concretos. E ela dizia: “Abstrato é aquilo que a gente não pode tocar”; e eu retrucava: “Então vento é abstrato”; e ela: “Não, porque vento a gente sente”; e eu, mais uma vez, com a fantástica sensibilidade de criança: “Então alegria é concreto, porque a gente sente também”. É, criança não está muito afeita a essas diferenças entre concretos e abstratos...

Existem conceitos que, por mais que se escondam na aura da abstração, são concretos em sua essência, pois definem-se pela concretização daquilo que representam. Assim é a alegria, o prazer, o rancor, o ódio. Assim é o amor. Já imaginou amor sem objeto? Quem ama, ama alguma coisa (nem que seja a si mesmo, num amor egoísta). Amor é abstrato só no mundo dos gramáticos. Pra quem é amante, amor é mais do que concreto.

Da mesma forma é a liberdade. Não há como imaginar liberdade sem visualizar os grilhões ruindo, as cadeias se rompendo, as amarras sendo desfeitas. Liberdade é um conceito eivado de sentimentos concretos, práticos, de gente de carne e osso. Liberdade é a vivência de quem não conhece limites em sua realidade particular. Por isso um prisioneiro pode achar que tem liberdade no limite dos 12m2 de sua cela, mas basta uma janela que dê para o mundo lá fora e ele se sentirá preso.

É neste sentido radical de liberdade, de rompimento das barreiras, que Jesus apresenta o instrumento de mudança da condição humana: “e conhecereis a Verdade, e a Verdade vos libertará” (Jo 8.32). A verdade nada mais é que o próprio Cristo, “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14.6). Na pessoa e na vida de Jesus Cristo encontramos a experiência real da liberdade. É em Cristo que verificamos o paradigma da liberdade humana.

Todo ministério de Jesus caminha no sentido de libertar o homem. O Seu próprio nascimento já traz em si um significado ímpar. Enquanto a Judéia padece sob o jugo de Roma, enquanto os judeus padecem ante a ganância dos sacerdotes, enquanto o povo padece sob a opressão das leis e códigos religiosos do judaísmo, Jesus nasce sob a égide da libertação. Este é o cerne da mensagem messiânica: o Libertador vem para nos livrar das tiranias do mundo. E por isso identificaram em Jesus um líder político revolucionário: de Suas palavras brotavam o sentimento e a percepção de que o homem não precisa estar sob nenhuma canga ou jugo pesados. Ao contrário, Jesus apresentava uma opção aos cansados e sobrecarregados: o jugo suave e o fardo leve da vida no Reino de Deus (Mt 11:30).

O curioso é que se escuta muito falar nas Igrejas sobre liberdade, mas a liberdade dos gramáticos. Aquela que fica enfileirada na série de exemplos de substantivos abstratos e que é decorada entre muitos outros para o dia da prova (como eu fiz tantas vezes). A verdadeira liberdade que Jesus propõe é fruto de uma experiência radical com Ele. Só uma experiência radical com Cristo pode levar à compreensão radical da liberdade.

Um exemplo disto é o jovem rico que se aproxima de Jesus (Mc 10:17-22). Talvez tenha enfrentado o preconceito de seus amigos por travar contato com um movimento popular e distante das elites, mas não foi o suficiente para afastá-lo da idéia de salvar-se. Por isso pode-se entender claramente a angústia e apreensão de sua pergunta: “O que devo fazer para ser salvo?” Ele se enquadrava em todos os modelos estabelecidos pela Lei e atendia a todos os seus requisitos, sem perceber que na maioria das vezes os sistemas religiosos e os códigos morais só servem para aprisionar o homem, ao invés de libertá-lo. Jesus Cristo, porém, quer ensinar a ele – e a nós – que a verdadeira liberdade é fruto de uma opção radical pelo Reino de Deus. Jesus não queria torná-lo um mendicante, mas sim mostrar ao jovem que na radicalidade de sua atitude estava a libertação de suas prisões individuais.

A nova forma de espiritualidade proposta por Jesus aponta nesta direção. Quando conversa com Seus discípulos a respeito da ansiedade natural e inerente ao ser humano, Cristo apresenta um exemplo do que tentava explicar: os lírios do campo e as aves do céu (Lc 12:22-34). A dependência direta do Pai dos Céus era o que os libertava das preocupações do dia-a-dia. Assim deveria ser também com os discípulos: compreender que estar diante de Deus nos faz livres das limitações humanas.

Mas esta espiritualidade, que resulta na expressão concreta da liberdade do Reino de Deus, não é irresponsável. Nós, cidadãos do Reino, somos libertos para servir. É servindo ao próximo, na dependência do Santo Senhor, que temos a certeza de que não haverá homem sendo senhor sobre outro homem. Esta é a proposta prática da liberdade do Reino de Deus: o fim da opressão humana, seja ela política, religiosa ou moral.

Isto nos faz pensar numa coisa curiosa. Nossas Igrejas têm insistido em que os seus fiéis devem buscar uma vida de constante espiritualidade. Os jovens são chamados, a todo momento, a reverem suas posições em prol de uma atitude mais “espiritual”. Mas que espiritualidade é essa? Uma experiência religiosa que nos veda os olhos e nos impede de enxergar o mundo ao redor? Com certeza esta forma de ver o problema vai de encontro ao modelo de espiritualidade de Jesus Cristo.

Quando ser espiritual é apenas pensar na Igreja o tempo todo, isolar-se da convivência com os amigos do “mundo”, cercar-se de cuidados para enquadrar-se no padrão pré-estabelecido de santidade, então alguma coisa está errada. Esta forma fundamentalista de se encarar a espiritualidade leva a um fenômeno freqüente em nossas comunidades: quem chega a um patamar elevado desta religiosidade acha-se em condições de julgar os outros por si mesmo, taxar aquele que é diferente de pecador e estabelecer limites na convivência e expressão do próximo. Isto tem vários nomes: discriminação, intolerância, coerção, todos sinônimos da ausência de liberdade. Certamente este não é o projeto de Jesus.

A espiritualidade de Jesus resulta em liberdade e não em coerção ou intolerância. Esta é a percepção que tem a mulher samaritana quando recebe as palavras do Mestre (Jo 4:1-30). Jesus Cristo apresenta a proposta de espiritualidade do Reino: não há local específico para adoração, nem em Samaria e nem em Jerusalém – conseqüentemente, a verdadeira adoração não permite o preconceito mútuo entre samaritanos e judeus. Jesus não olha o fato da mulher ser samaritana, nem sua vida amorosa conturbada, Ele apenas enxerga nela a possibilidade de ter uma experiência com o Messias. Sua oferta ia muito além da água retirada do poço, Sua oferta era uma “fonte a jorrar para a vida eterna”. Ao contrário dos discípulos que se perguntam: “por que Jesus dá trela a esta mulher?”, Cristo se aproxima com liberdade suficiente para pedir um gole d’água. Esta é a espiritualidade de Jesus: permitir ao ser humano que seja verdadeiramente livre.

Quem quer viver a verdadeira expressão da espiritualidade apresentada por Jesus Cristo precisa compreender a sua relação com a liberdade. Ser espiritual e cercear a liberdade do outro são atitudes que não combinam. Isso foi mostrado por Jesus no Seu encontro com a mulher adúltera (Jo 8:1-11). Ela vivia presa nos grilhões do estigma da sociedade judaica, acorrentada pela marginalização hipócrita promovida pelos mesmos que dela se utilizavam quando sentiam desejo, enclausurada no seu mundo próprio. Quando Jesus convida os “sem-pecado” a atirar a primeira pedra, Ele promove a libertação daquela mulher, pois a coloca no mesmo patamar daqueles que a acusaram. Agora, sim, ela está livre para viver. Agora, sim, ela está pronta pra ouvir: “Vai e não peques mais”.

Não é difícil vivenciar esta espiritualidade, basta tirarmos o centro de nós mesmos. O Evangelho de Jesus Cristo aponta sempre para o próximo, para quem está ao lado, para o outro. Quando o ego perde o sentido, o outro toma o centro. Assim, na festa do Reino de Deus, a gente se alegra com a alegria do companheiro e festeja a vitória do irmão, muito mais do que nossa própria alegria e vitória. É isto o que Cristo quer dizer quando resume os mandamentos em amar a Deus e amar ao próximo: significa tirar a referência de si mesmo e colocá-la no outro e em Deus, o Totalmente Outro (no dizer do teólogo Karl Barth).

Se essa compreensão do próximo como fundamento do Reino de Deus for vivida por todos nós, então teremos compreendido o que é uma liberdade que resulta em prática. Quando alguém é senhor e outros são servos, alguns trabalham enquanto um é servido. Quando alguém se julga o único correto e o paradigma de vida cristã, torna-se impossível ouvir o outro, que é diferente. Esta atitude intolerante, infelizmente, é o que temos visto em muitas de nossas comunidades.

Mas a proposta de Jesus Cristo continua viva e firme. Vivenciar Sua espiritualidade é sair do conforto da contemplação e descer do monte para enfrentar a realidade (Lc 9:28-37). Ser espiritual, na concepção de Jesus, é ser livre – livre para servir. E essa liberdade precisa fugir do palavrório infrutífero e tronar-se visível, experimentável, concreta.

Com tudo isso, na verdade, eu percebo que continuo parecido com a época em que era criança: ainda confundo os abstratos e os concretos. Mas, ao contrário dos adultos pretensamente esclarecidos, não me importo nem um pouquinho: afinal de contas, é às crianças que pertence o Reino de Deus.

Christian David


 

 

 

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