CHRISTUS
VICTOR: O CORDEIRO VENCEDOR
por
Christian David Soares Bitencourt
SUMMERS,
Ray. A Mensagem do Apocalipse: Digno é o Cordeiro. Juerp:
Rio de Janeiro, 1978. 211p.
Revelação
é uma palavra curiosa: ao mesmo tempo em que significa
mostrar algo que estava oculto, aponta também para esconder
ainda mais (re-velar) alguma coisa. No contexto religioso, revelação
é o anúncio dos mistérios divinos. Mas
estes mistérios só são claros para os iniciados,
pois a linguagem da revelação é uma linguagem
particular deste grupo.
Ray
Summers, em A Mensagem do Apocalipse: Digno é o Cordeiro,
mostra isso de forma instigante. De todos os livros da Bíblia,
por causa de seu caráter hermético, o Apocalipse
é o mais rejeitado e vilipendiado. Interpretações
esdrúxulas têm sido feitas ao bel-prazer do intérprete.
Porém, o Apocalipse só toma sentido quando decodificado
a partir da realidade do grupo a quem foi destinado: esta é
a tese que irá perpassar toda a obra.
No esforço de se operar esta decodificação,
deve-se analisar o grupo literário a que pertence o Apocalipse.
Isso é feito na primeira parte, A Formação
Histórica (e no primeiro capítulo, A Natureza
da Literatura Apocalíptica). Ali analisa-se o contexto
histórico originário da assim-chamada literatura
apocalíptica. Esta literatura surge no cativeiro (e no
retorno) babilônico. Sobre perseguições
políticas as mais diversas, os judeus precisavam manter
sua mensagem de libertação messiânica protegida
dos opressores. Mas, ao mesmo tempo, esta mensagem nascia para
ser comunicada ao povo oprimido. Assim, o caráter hermético
da apocalíptica é claro quando analisada a sua
origem.
Esta
relação entre libertação messiânica
e pregação simbólica nos mostra o seio
da apocalíptica: o profetismo. Porém, algumas
diferenças básicas se fazem notar: a literatura
apocalíptica vai estender o escopo de sua mensagem ao
futuro , propondo uma libertação também
no plano metafísico , além de contribuir para
a formação de uma ótica escatológica,
quando –ao contrário do profetismo – propõe
soluções consoladoras para o problema da morte.
A
análise das características da literatura apocalíptica
é essencial para uma correta interpretação
do Apocalipse. Visões, predições, símbolos
e drama são elementos típicos da apocalíptica,
porém de grande relevância é a percepção
de que “o apocalíptico sempre teve uma significação
histórica” . É esta relação
entre a produção apocalíptica e a situação
crítica de sofrimento do povo que vai nos tornar clara
a objetividade histórica do Apocalipse.
O
segundo capítulo da obra analisa os Métodos de
Interpretação do Apocalipse. Cinco são
os métodos apresentados e dissecados: o futurista, o
da continuidade histórica, o da filosofia da história,
o preterista e o da formação histórica.
São apresentados em escala crescente de acordo com a
atenção dada à significação
histórica do Apocalipse.
O
método mais popular de interpretação, com
certeza, é o futurista. Este trabalha o Apocalipse como
um desvelar dos acontecimentos futuros, tratando-se cada símbolo
como literal. As grandes objeções feitas são
a desconexão desta prática literalista com as
características da apocalíptica (que é
eivada de símbolos) e a ausência de relação
histórica com a comunidade receptora original do livro.
Esta é a mesma crítica ao método da continuidade
histórica – que vê, no Apocalipse, um retrato
fiel do desenvolvimento da Igreja – e da filosofia da
história – que enxerga, no livro, uma discussão
a respeito das forças que atuam no conflito bem x mal.
Um bom intérprete de Apocalipse perguntará: o
que essas linhas de interpretação ofereceriam
para os receptores
primitivos? Por isso, Summers define um princípio: “nenhuma
interpretação pode ser tida como correta, se não
tiver significação para aqueles que primeiramente
receberam o livro” .
O
método preterista assume grande vantagem quando propõe
uma interpretação voltada para a realidade do
povo primitivo cristão frente ao Império Romano.
Seu único pecado é ignorar a possibilidade de
uma mensagem para hoje. Assim, Summers apresenta o método
da formação histórica como o mais correto,
por entender que ele oferece a possibilidade da real compreensão
do Apocalipse (inclusive para os dias de hoje).
Segundo
este método, o primeiro público-alvo do livro
era “os cristãos de seus próprios dias”
. É extremamente necessário relacionarmos as palavras
do Apocalipse com o contexto histórico que o originou,
o seu sitz im leben. Outro princípio importante é
o da negação da interpretação literalista:
seguindo a literatura apocalíptica, os símbolos
do Apocalipse devem ser entendidos como tais, inclusive quando
estes fazem menção a outros símbolos vétero-testamentários
(o que lhe é característico). Completando os princípios
de interpretação do método da formação
histórica, Summers sugere que as visões do Apocalipse
devem ser entendidas em conjunto, sem destacar excessivamente
os pormenores. A função desses pormenores é
realçar o efeito dramático que o livro tem sobre
a imaginação – a quem, segundo Pieters,
é dirigido o Apocalipse .
Como
defensor deste método de interpretação,
Ray Summers salienta a importância da análise da
formação histórica do Apocalipse: sua autoria,
a data de sua composição, os receptores iniciais
e o contexto vital da obra. Isto é que será feito
em A Formação Histórica do Apocalipse,
terceiro capítulo.
Uma
das mais antigas discussões com relação
ao Apocalipse é a respeito de sua autoria. O fator levantado
por muitos para aventar a possibilidade de que outros, que não
(um) João, o tenham escrito é o costume característico
da literatura apocalíptica de se utilizar pseudônimos
na autoria das obras. Summers rebate este argumento com o fato
de que, ao contrário da época da fixação
do Cânon do AT, existia no momento da escrita do livro
a concepção de que “o espírito de
profecia voltara aos crentes”, pois “avivara-se
a crença na inspiração” , não
havendo então nenhuma necessidade de um pseudônimo
relacionado a uma figura que detivesse a profecia (em detrimento
dos outros) para dar autoridade ao livro. Ray Summers assume
a linha da tradição quando relaciona a autoria
do Apocalipse com João, o apóstolo – o que
acaba dando sentido à argumentação de que
o autor do livro deveria ter alguma forte conexão com
os cristãos perseguidos da Ásia Menor (os receptores
originais). Também propõe como data de escrita
o período do governo de Domiciano, com certeza a fase
de maior perseguição da comunidade cristã
da época.
A
segunda parte do livro trata da interpretação
propriamente dita. Para Summers, o objetivo do Apocalipse está
claro desde seu prefácio: mostrar o Cordeiro como redentor
e vencedor sobre todas as batalhas. Nos termos do autor, o livro
tem “o fito de apresentar Cristo como eternamente vitorioso
sobre as condições temporais e assim encorajar
os cristãos do tempo de João e de todos os tempos
até o retorno de nosso Senhor” . Esta definição
já explicita o fato de que Apocalipse tem como pano de
fundo a realidade de sua época, mas é abrangente
a todas as épocas, tendo uma mensagem importantíssima
para os dias de hoje.
Cristo,
o Cordeiro redentor e vencedor, é objeto e autor da revelação
. Todas as qualidades simbólicas da visão inicial
que João
tem de Cristo (das roupas, cabelos, olhos, pés, etc)
devem ser entendidas como símbolos do Cordeiro triunfante.
Esta primeira visão é importante para os leitores
do livro porque reforçam o mais primitivo dos dogmas:
que Cristo ressuscitara dos mortos, triunfara sobre a morte
e o pecado e agora sustentava com poder a Sua Igreja.
As
cartas às sete igrejas da Ásia Menor também
devem ser entendidas sobre o pano de fundo simbólico.
Com certeza elas não eram as únicas igrejas da
região, mas o simbolismo do número sete (que contém
a idéia de perfeição e completação,
para Summers ) nos dá a idéia de que a mensagem
do Apocalipse deveria ser levada a todas as igrejas.
Estas
cartas então, com sua estruturação formal
de identificação do remetente, louvor pelas virtudes,
queixa contra os defeitos, conselho e promessa, serviriam não
só como admoestações pastorais, mas como
introdução geral ao livro, demonstrando a universalidade
de sua aplicabilidade.
O
próximo momento do livro é o início do
“Drama da Redenção” . Em primeiro
lugar, Deus é louvado por todas as criaturas por Sua
grandeza e santidade. Logo após, um livro selado é
apresentado a João como símbolo da revelação.
O choro do apóstolo pelo conteúdo do livro que
não poderia ser aberto leva à pergunta crucial:
“Quem é digno de abrir o livro?”. Então
a figura principal é apresentada: Jesus Cristo, o Cordeiro
de Deus, o Senhor da Revelação, o Digno de abrir
o livro.
Sintomática
é a apresentação destes dois momentos grandiosos:
o louvor das criaturas a Deus Criador e o louvor ao Cordeiro,
o Digno. Uma cristologia bastante evoluída (em função
da tardia composição do livro) fica clara neste
instante: não há diferença de nível
de adoração a Deus e ao Cordeiro, o que já
caracteriza a equivalência entre eles .
A apresentação do livro e do Cordeiro levam a
uma mirabolante seqüência de fatos.
Cristo,
o representante oficial de Deus para abrir os selos , vai o
fazendo um a um. Primeiro são os selos, depois (em função
do último selo) são as setes trombetas, sem esquecer-se
dos sete trovões: todos símbolos do julgamento
completo de Deus.
Summers oferece algumas interpretações interessantes
para figuras tradicionais do Apocalipse. Por exemplo, o primeiro
cavaleiro (na abertura do primeiro selo), identificado por muitos
como o Senhor Jesus, é entendido como representação
do poderio militar. Esta interpretação é
condizente com os outros cavaleiros (guerra, fome e pestilência),
pois todos são instrumentos da derrota do Império
Romano.
Outra discussão interessante é a da diferenciação
entre os 144.000 escolhidos e a “grande multidão”.
A interpretação tradicional (de linha dispensacionalista
) afirma que o primeiro grupo é composto de judeus convertidos
e o segundo, de gentios. Já para outros intérpretes,
como Pieters, Charles e o próprio Summers, trata-se da
distinção entre Igreja Militante e Triunfante
- os últimos não precisavam da marca da proteção,
porque já estavam sobre a proteção direta
do Altíssimo (uma referência aos mártires).
Tão mal-interpretada como outras narrativas é
a aparição das duas testemunhas (Ap. 11:3-13).
Como o anúncio futuro de duas personalidades miraculosas
não teria impacto nenhum para a comunidade perseguida
do fim do primeiro século, Summers tenta apresentar uma
outra solução. Partindo do simbolismo oriental
dos números, nota-se que dois “traz a idéia
de fortaleza” , o que implica no verdadeiro sentido das
duas testemunhas: um testemunho de grande poder (efetuado com
certeza pela comunidade cristã perseguida). Os três
momentos das testemunhas (surgimento, morte e ressurreição)
ganham novo e notável sentido nessa perspectiva: o período
apostólico, a perseguição e a suplantação
da perseguição. Agora, sim, há relevância
não só para os primeiros receptores do Apocalipse
quanto para a Igreja de todos os tempos: a pregação
do Evangelho resistirá a qualquer perseguição
e dificuldades.
O
momento seguinte do Apocalipse, expresso no capítulo
O Cordeiro e o Conflito, apresenta imagens, sem uma necessidade
seqüencial cronológica, que nos mostram o conflito
final entre Cristo e o mal, onde surge em alto e bom som a grande
vitória do Cordeiro.
Temas
importantes são tratados neste momento. Um deles é
a existência das bestas e do dragão. Muitas sandices
já foram ditas com relação a estes personagens,
mas Summers traz um enfoque coerente com sua proposta. O dragão
é a representação do próprio diabo,
entidade espiritual do mal que incentiva e controla a luta contra
os santos. A primeira besta é o imperador romano, caracterizado
pelo número 666. Intérpretes do Apocalipse de
todos os tempos realizaram verdadeiras elucubrações
matemáticas no intuito de descobrir qual seria o nome
representado pelo número, porém, seguindo a linha
do simbolismo numérico, a ênfase recai sobre o
significado da tripla repetição de 6 – símbolo
de “desgraça, ruindade ou ruína” :
a besta representa um poder maligno extremamente forte, nada
mais associável que o Imperador. Já a segunda
besta, num olhar histórico, é a junta romana na
Ásia Menor, que tinha o dever de zelar pela religião
oficial do Estado.
O
tema do milênio é outro importante momento da obra.
Enquanto o mundo se digladia em torno de correntes quiliásticas,
como pré-milenismo ou pós-milenismo, Summers propõe
uma interpretação simbólica do texto. Se
1000 trazia ao oriental a idéia de “completação
mui certa” , a proposta do texto é assegurar que
Satanás seria aprisionado completamente, não havendo
preocupação com reinado do milênio .
Toda
esta narrativa da batalha escatológica culmina com a
vitória do Cristo, o Digno Cordeiro. Sobre todo o mal,
todas as tribulações, todas as dificuldades, reina
o Cordeiro vencedor. Esta palavra de alento encerra o Apocalipse,
quando os derrotados (“não-remidos” ) estarão
eternamente longe de Deus, e os vencedores (“remidos”
) habitarão para sempre com Ele.
Digno
é o Cordeiro é uma obra interessante. Ao mesmo
tempo que apresenta traços conservadores marcantes (p.
ex. a autoria joanina e a crença na visão literal
em Patmos), Ray Summers traz à tona um método
de interpretação do Apocalipse afinado com a crítica
histórica. Interpretação correta do Apocalipse
é aquela que leva em conta o processo histórico
de formação do livro, entendendo-o como uma mensagem
em primeiro lugar dirigida à comunidade cristã
do final do primeiro século.
O
Apocalipse é um livro escrito para os perseguidos, para
os explorados, para os que sofrem com a opressão da classe
dominante. É um livro que reafirma, apesar de todas as
dificuldades e tribulações temporais, que ao final
de tudo, Jesus Cristo, o Cordeiro Digno de abrir o livro, é
o vencedor.
Mais
do que uma palavra de alento, o Apocalipse é um texto
de incentivo à comunidade primitiva e à Igreja
de todos os tempos. A esperança escatológica do
Christus Victor é o que move o povo rumo à concretização
de sua tarefa da implantação do Reino de Deus.
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