A
CENTRALIDADE DO KERIGMA
por
Christian David Soares Bitencourt
BULTMANN,
Rudolf. Crer e compreender. Editora Sinodal: São Leopoldo,
1987. 253p.
Entender
a teologia de Bultmann passa por compreender seu programa de
desmitologização do Novo Testamento. Assim, esta
controversa teologia bultmanniana é anunciada no primeiro
e central artigo de sua obra: Novo Testamento e mitologia.
Para
ele, o Novo Testamento é escrito a partir da mentalidade
de seus autores. Assim, pode-se perceber todo um contexto cultural
por trás dos escritos neotestamentários. A forma
de enxergar o Universo é mítica (p. 13), tudo
pode ser explicado a partir dos conflitos entre as forças
cósmicas do bem e do mal. Quem escreve o Novo Testamento
– a fim de se fazer inteligível – faz uso
de sua concepção peculiar do Universo e assim
anuncia o acontecimento salvífico.
Porém
não há como concatenar a compreensão mítica
da época do Novo Testamento com o Universo apreendido
pelo homem moderno. Bultmann apresenta o conceito de sacrificium
intellectus: o esforço do homem de hoje para aceitar
a concepção mítica neotestamentária
(p. 15).
Seguindo
seus conceitos exegéticos, Rudolf Bultmann tenta eliminar
os pressupostos culturais do Novo Testamento a fim de obter
a mensagem salvífica de forma inteligível ao homem
moderno. Esta tarefa de releitura existencial do texto bíblico
é apresentada como o programa de desmitologização.
Alguns
princípios devem ser entendidos nesta tarefa. O Novo
Testamento apresenta duas possibilidades de existência
do ser humano: fora da fé e na fé. A compreensão
do mundo fora da fé é o mundo regido pela transitoriedade,
e quando o homem vive nesse estado (na carne), faz da esfera
do visível e transitório a sua razão de
ser, gerando uma relação de dependência.
Os seres humanos passam a enxergar-se com o “temor, no
qual cada qual segura a si e o que é seu, na sensação
secreta de que tudo, também sua própria vida,
lhe escapa” (p. 26).
O
contrário desta percepção é aquele
que foi livre pela graça de Deus, livre de seu passado.
O ser humano na fé já não vive segundo
a transitoriedade do mundo, mas pode olhar para frente, projetar-se,
“abrir-se livremente ao futuro”: isto é a
fé (p. 27). Esta fé significa atitudes práticas,
não sendo ocasionada em um momento mágico, mas
sendo exigida a cada instante. Esta percepção
prática vai contribuir para a desmitologização,
pois “a vida cristã não é caracterizada
por fenômenos psíquicos, mas pela postura da fé”
(p. 28).
Neste
esforço de eliminar os resquícios mitológicos
do Novo Testamento, chega-se a uma pergunta clara: a fé
na releitura existencial dos textos bíblicos é
simultaneamente fé em Cristo (p. 29)? A filosofia também
descreve o homem como um ser em conflito e que necessita libertar-se
da transitoriedade em função da transcendência.
Ela vai além, ao afirmar que a atitude natural do homem
é a fé (no sentido existencial) e que, ao assimilar
esta nova postura, o homem está simplesmente sendo o
que já é (p. 33). Sendo assim, a própria
narração do evento salvífico de Cristo
não deveria ser abandonada como mito?
Há
porém uma diferença entre a filosofia e o Novo
Testamento. Este não fala sobre a essência do ser
humano, mas é “precisamente a proclamação
dessa ação libertadora de Deus, a proclamação
do acontecimento salvífico efetuado em Cristo”
(p. 33). Deus – através do evento Cristo –
concede a liberdade ao homem que este não tem. Não
se trata de uma negação da filosofia, pois a proclamação
neotestametária também afirma que, na postura
de fé, o homem se torna o que ele já é.
Porém, toma uma direção radicalmente diferente
da filosofia ao caracterizar o ser humano antes e fora de Cristo
como alguém que “não se encontra em seu
ser autêntico, não está na vida, mas na
morte” (p. 34): quem não tem fé não
é, na mais profunda essência do ser.
Esta
atitude contrária à postura da fé –
que seria a auto-suficiência humana no sentido de não
aceitar a libertação oferecida por Deus –
é o pecado. E se o conceito de pecado parece mitológico
ao homem, é apenas impressão, exatamente pela
cegueira promovida por seu estado radical de queda (p. 36).
Esta é uma constatação de Bultmann que
nos faz inquirir: se o pecado somente aparenta ser resquício
mitológico por causa do estado de queda humano, o mesmo
não se aplica ao restante do Universo mítico neotestamentário?
Não entenderíamos a linguagem do Novo Testamento
como mitológica exatamente pelo apego à mentalidade
cientificista moderna – retrato da auto-suficiência
humana? A negação feita pelo homem de hoje do
conceito de pecado parece abrir uma brecha no sistema de Bultmann
que pode gerar um sistema contrário partindo dos mesmos
princípios.
Na
análise do evento Cristo, como instrumento divino de
salvação, percebe-se que “o histórico
e o mítico estão peculiarmente interconectados”:
“ao lado do evento histórico da cruz encontra-se
a ressurreição, que não é um evento
histórico” (p. 38). Destarte o sentido da figura
salvífica não é o caráter histórico
de Jesus e sim o seu significado.
Assim, na releitura desmitologizante do Novo Testamento, a concentração
final deve ser no evento salvífico: a cruz e a ressurreição.
E
se a cruz carrega todo um simbolismo de julgamento e expiação
típico da mentalidade de sua época, então,
segundo Bultmann, “essa interpretação mitológica,
em que se mesclam concepções sacrificiais e uma
teoria jurídica de satisfação, não
é admissível para nós” (p. 39). Mas,
para nós quem? Para o homem moderno? Para Rudolf Bultmann?
Parece haver uma confusão – proposital, é
claro – entre a opinião de Bultmann a respeito
do mundo e a opinião do restante da humanidade moderna.
O mistério da salvação na cruz necessita
ser desmitologizado porque a humanidade assim o exige.
A abertura do homem à transcendência, caracterizada
pela fé, passa necessariamente por vivenciar a experiência
de Cristo, o “levar a cruz”: “crer na cruz
significa assumir a cruz de Cristo como a própria, significa
deixar-se crucificar com Cristo” (p. 40). Assim a possibilidade
da experiência humana com a cruz de Cristo aponta para
o fato de que “esse evento tem dimensão ‘cósmica’
em seu significado” (p. 40). Este esforço metafísico
por parte de Bultmann em corresponder à salvação
um encontro “místico” com uma realidade cósmica
acaba por aproximá-lo do Universo mítico do Novo
Testamento, desmitologizado por ele.
A
ressurreição por conseguinte, como evento mitológico
por excelência (p. 41), não tem necessidade histórica
alguma. A ressurreição deve ser entendida como
o fator que torna cósmica a experiência da cruz,
por isso os dois eventos são inseparáveis: trata-se
de uma só proclamação. A ressurreição
dá à cruz o caráter a-histórico
necessário às pessoas que não viveram no
mesmo tempo que o evento Cristo e por isso não têm
como experimentá-lo historicamente. Só podemos
crer na cruz como acontecimento salvífico “porque
é proclamada com a ressurreição”
(p. 43).
Mesmo
depois de efetuado o programa de desmitologização,
ainda sobra um resto mitológico para o homem moderno:
o falar de Deus e de sua ação escatológica.
Porém, aí está o grande triunfo da experiência
cristã: os fenômenos escatológicos são
objetos de fé, “precisamente a impossibilidade
de evidenciá-los protege a proclamação
cristã da acusação de ser mitologia”
(p. 45).
A
questão que se levanta é: o mesmo argumento utilizado
por Bultmann para a realidade metafísica de Deus e suas
relações com o homem não poderia ser utilizado
para o restante do Universo mítico do Novo Testamento?
Se a interpretação escatológica dos eventos
naturais é objeto de fé, e exatamente aí
está a sua defesa, não se pode aplicar o mesmo
à crença em eventos supra-naturais? Existe limite
para a desmitologização? se existe, onde fica?
O
programa de desmitologização de Bultmann traz
benefícios inquestionáveis à pregação
cristã hodierna. O seu esforço por tornar a mensagem
cristã inteligível para o homem moderno trouxe
de volta a importância da proclamação da
salvação em Jesus Cristo. Além disso, Bultmann
ensina que o centro da vivência cristã deve ser
a nova postura diante do mundo, a abertura em relação
ao outro como desprendimento de si mesmo e, consequentemente,
do pecado: esta é a salvação propiciada
pela graça divina. Mas, há traços de fragilidade
no argumento bultmanniano que, se não o derrubam, possibilitam
críticas sérias.
Todo
o trabalho de Rudolf Bultmann para chegar a sua conclusão
da fé cristã como reinterpretação
escatológica do mundo só demonstra que esta fé
cristã implica necessariamente numa visão diferente
deste mundo. O mundo do cristão continua sendo diferente
do mundo do não-cristão moderno. Ainda há,
como o próprio Bultmann admite, resto mitológico
na pregação cristã pelo simples fato de
supor a existência de uma realidade supra-natural. Sendo
assim, acaba havendo uma flexibilidade em escolher que eventos
mitológicos do Novo Testamento serão aceitos:
para uns, o nascimento virginal e a ressurreição
são essenciais; outros não conseguem viver sem
a crença nos milagres, e assim sucessivamente.
E
o grande calcanhar de Aquiles no programa de desmitologização
do Novo Testamento é exatamente o postulado em que se
baseia: o homem moderno não aceita a concepção
mítica do Universo neotestamentário. Quem é
este homem moderno? Se ele for um acadêmico, burguês
e europeu – o retrato de Bultmann – talvez seja
aceitável a teoria, mas com certeza este é o perfil
de uma pequena minoria da humanidade.
O
crescimento do carismatismo, tanto no catolicismo quanto no
protestantismo, com sua ênfase em curas e batalhas espirituais,
e até mesmo nos meios mais “esclarecidos”,
com a adesão a inúmeras seitas espiritualistas
e místicas, mostra que a constatação de
Rudolf Bultmann está longe de se concretizar: a concepção
do homem moderno (identificando-o com a maioria da humanidade)
ainda é uma concepção mítica do
universo, fazendo todo o cosmos depender das batalhas travadas
entre forças sobrehumanas.
Deve-se
ressaltar que todos os outros artigos do livro do teólogo
alemão – contidos no segmento Crer e compreender,
a segunda parte da obra – seguem a linha desenvolvida
neste primeiro, e mais importante, artigo. Busca-se o lugar
da cristologia, da hermenêutica e da exegese dentro desta
nova forma de se encarar o mundo, agora desmitologizado.
Assim,
insiste-se no encontro com Jesus como um encontro histórico
e metafísico ao mesmo tempo: histórico por se
travar na realidade do dia-a-dia, metafísico por basear-se
no caráter cósmico do evento Cristo. Fica claro,
pos exemplo, em O que o Jesus histórico significou para
a teologia de Paulo, que a pregação de Paulo dá
uma orientação (e não uma substância)
diferente à pregação de Cristo: enquanto
para este a tensão entre o já e o ainda não
do Reino aponta para o futuro, para aquele resulta numa realidade
presente. E é esta realidade presente e emergencial da
mensagem do Reino que nos faz perceber a importância do
kerigma cristão para o mundo.
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