Christian D. S. Bitencourt

Fichamento do verbete Concupiscência, de J. B. Metz

Como entender, hoje, o conceito de concupiscência? Esta é a pergunta para a qual o verbete, assinado por J. B. Metz no Dicionário de Teologia, tenta dar uma resposta satis-fatória. Central para a antropologia teológica e a teologia moral atuais, o conceito de concupiscência corresponde ao próprio processo dialético de crescimento do homem, relacionando-se com as aspirações e impulsos que fundamentam a liberdade própria deste homem.

A partir do testemunho bíblico, vê-se a concupiscência relacionada ao pecado original. Pode-se entender esta concupiscência levando-se em conta o estado atual de coisas deste nosso mundo – determinado pelo pecado de Adão – que acabará condicionando todas as dimensões da existência humana. A salvação, dentro deste contexto, é caminhar para a concretização escatológica da vitória total da graça sobre a concupiscência do mundo. Se é verdade, portanto, que a concupiscência encontra sua raiz no pecado original e é impulso para o pecado pessoal, também é verdade que ela pode ser vencida pelo homem justificado, com o auxílio da graça.

A antropologia teológica clássica vai oferecer duas molduras para a compreensão do conceito de concupiscência: uma, a partir de uma perspectiva platônico-estóica, enxerga o conceito em função da luta entre o sensível e o espiritual, colocando o acento na ten-tativa de deturpação do espírito pelo sensível; outra, de matiz aristotélica (que acabará por refletir a perspectiva bíblica), leva em conta o caráter integral e a totalidade do ser humano, deixando de manter um dualismo entre a sensualidade e o espírito e entenden-do esta sensualidade como elemento da constituição mesma do próprio espírito humano.

A concupiscência está ligada ao mundo que já é dado ao homem, já está posto para ele, em sua vivência histórica. Isto permite algumas conclusões a respeito desta concupis-cência (enquanto impulsos anteriores que já são dados ao homem): o ser humano é atin-gido totalmente por ela (e não apenas sua “parte inferior” como, primeiramente, quis Tomás de Aquino); esta concupiscência exprime a realidade humana, pois relaciona-se à constituição de sua própria subjetividade; não entende-se o ser humano (nesta existência histórica) sem esta situação interior, pois aí reside a possibilidade de sua auto-realização livre; e, por fim, esta concupiscência atinge o homem concreta e historicamente. Desta forma pode-se perceber, ao mesmo tempo, que cabe ao homem a tarefa de transformar estes impulsos, orientando-os conforme a estrutura da liberdade, e que este mesmo ho-mem, por si só, não tem condições de promover esta transformação e re-orientação.

Enquanto mundo que já esta posto para a existência humana, a concupiscência está liga-da à “constante presunção negativa referente à liberdade” verificada no ser humano após Adão. Este existencial negativo é a tendência, anterior à opção individual, de impulsio-nar o homem a uma atitude de pecado. Por isso, a atuação livre do ser humano deve ser entendida a partir da luta constante contra o abandono de si mesmo (possibilitado por esta tendência natural ao pecado). Na verdade, a única maneira pela qual a liberdade humana pode concretizar-se é estando inserida completamente nesta luta contra seus impulsos anteriores e a favor da opção por Deus.

Assim, o fato de que Jesus Cristo não tenha pecado (sua “imunidade” da concupiscên-cia) é a radicalidade desta luta humana contra os impulsos concupiscentes do mundo. Em Cristo, como que num prenúncio e programa de nossa atuação cristã, vê-se a possi-bilidade radical de tornar este mundo – e sua disposição natural contra a salvação divina – aberto para Deus.

Neste sentido, não se pode falar de uma concupiscência que atinja apenas uma parte do homem, nem entende-la em função do “embate” entre sensível e espiritual: é o homem todo, integral, que é atingido por esta disposição que lhe é posta. A partir desta percep-ção, é perfeitamente possível construir uma antropologia teológica que assuma o ho-mem em todas as suas dimensões sem, simplesmente, transformar sua sensualidade em morada da concupiscência: esta o atinge por completo.

Esta compreensão da concupiscência vai, também, determinar a compreensão da graça. Não se deve entender a graça como um conceito extrínseco ao homem, que lhe vem de fora e que se lhe mantém constantemente estranha. Ao contrário, a graça deve estar in-tegrada no conjunto da decisão vital do ser humano. É nesta relação concupiscência-graça que se dá a livre possibilidade do agir humano.

A ação do ser humano deve ser uma constante tomada de decisões em favor de Deus, acolhendo a graça a cada momento e superando, assim, a concupiscência. Esta é a natu-reza da caminhada da salvação neste processo histórico de “coexistência” entre graça e concupiscência: “transformar sempre mais a condição concupiscente da nossa existên-cia”, caminhando do existencial negativo para o existencial de Cristo.

 

 

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