AO
TOQUE DO PANDEIRO
(CRISTO, A CULTURA E O MUNDO)
Não
há como deixar de notar sua presença. No meio
da multidão, Bíblia colada ao peito ou erguendo-se
como espada, ouve-se a voz rouca anunciando os oráculos
de Deus. Na estação de trem de São Cristovão,
no Rio, pode-se vê-los aos borbotões: são
os pregadores populares. O discurso é sempre o mesmo:
com suas roupas surradas e ternos encardidos, proclamam o pecado
que permeia o mundo e o juízo iminente do Senhor. Salve-se
quem puder, a hora é essa, pois nada que exista neste
mundo é bom. E seguem-se os cânticos ao som de
um pandeiro velho.
Nós
os olhamos de longe, num misto de desprezo e admiração.
Ao mesmo tempo em que nos achamos superiores àqueles
“fanáticos”, nos repreendemos por não
termos algo tão forte para acreditar ao ponto de perder
completamente o senso de ridículo pela urgência
da mensagem. E qual a razão de nossa atitude? Na verdade,
nossa Igreja não se define bem em relação
ao mundo, ao seu dia-a-dia, aos seus costumes, à sua
cultura. Tratamos muito bem dos assuntos celestiais, “tocamos
nas vestes de Jesus” em nossos cultos, mas ainda estamos
confusos na relação com o mundo em que vivemos.
Para os pregadores ferroviários isto é muito simples:
o mundo, e tudo que se relaciona com ele, é mau. Mas
e para nós?
Ao
enviar Seu Filho à terra, ao dar início à
parte mais importante do programa da salvação,
Deus decidiu dar-Lhe forma de homem. Jesus Cristo, o Verbo,
não somente se fez carne, mas habitou entre nós
(Jo 1.14), esteve ao alcance das mãos, à vista
de todos. Ainda temos muito o que aprender e refletir a partir
do mistério da Encarnação. Quando Cristo
assume a condição de ser humano, Ele está
santificando esta condição, dizendo que é
possível viver uma boa vida desse jeito, que é
possível fazer mais ainda do que Ele fez por aqui (Jo
14.12). A Encarnação, na verdade, apresenta a
primeira postura de Jesus Cristo em relação a
este mundo: a assimilação.
Ao
encarnar-Se, Jesus assimila a cultura de sua época. Ele
nasce como a grande maioria da população do planeta
em todos os tempos tem nascido: em meio à pobreza (Lc
2.1-7); é circuncidado e apresentado ao Senhor como todas
as crianças da Judéia (Lc 2.21-24); cresceu e
deu trabalho a seus pais como todo menino faz (Lc 2.40-52);
fala a mesma língua de todos seus compatriotas (Mc 1.21),
está onde o povo se diverte (Jo 2.1-12) e senta-se para
conversar e comer com todo o tipo de gente (Mt 9.10-13). Jesus
Cristo não nega sua cultura, pelo contrário, a
assimila de forma marcante.
Nesta
época de festas juninas, julinas e agostinas, com quadrilhas,
bandeirolas, músicas nordestinas e quentão, muita
gente se pergunta qual a nossa relação com isso
tudo. A solução mais fácil é negar
todos estes costumes, taxá-los de diabólicos (e
outros epítetos demoníacos) e continuar com nossa
prática de isolamento. Não se trata aqui de qualificar
tais festas como boas e sadias (apesar de continuar achando
que poucas coisas no mundo superam o acordeão de Gonzaga
e Dominguinhos), mas, sim, de questionar a nossa posição,
gratuita e natural, com relação a elas.
Há
uns quinze anos atrás, causou grande celeuma um artigo
publicado no Brasil Presbiteriano, órgão informativo
de nossa Igreja. O autor do tão discutido artigo propunha
que se celebrasse o Natal com elementos culturais brasileiros,
com canções como Anunciação (Alceu
Valença) e Bandeira do Divino (Ivan Lins). O furor não
tardou a surgir. Chegou-se ao ponto de determinar que o jornal
se retratasse e não publicasse mais qualquer coisa sem
submeter à liderança da Igreja. Poderemos argumentar
que o país (e, consequentemente, a Igreja, que anda sempre
no último vagão do bonde da história) vivia
um clima confuso, com a possibilidade da abertura política
e muito cuidado com excessos. Mas e se o artigo fosse publicado
hoje, qual seria a reação?
O Evangelho deixa claro que a postura inicial de Cristo com
relação à cultura é de assimilação.
Quando valoriza o ser humano, na Encarnação, Cristo
está valorizando também a cultura humana. Lutar
por permanecer em uma redoma, tal como os essênios na
época de Jesus ou os monges em toda a trajetória
da Igreja, é reafirmar o espírito de isolamento
e não entender a petição de Jesus, com
relação a nós: “Não peço
que os tires do mundo” (Jo 17.15).
Mas
também está claro que, se a primeira postura de
Jesus é a assimilação, a segunda é
a crítica. Se a preocupação inicial é
“não peço que os tires do mundo”,
o pedido conseqüente é “mas que os guardes
do mal” (Jo 17.15). Toda a posição de valorização
da cultura humana, assumida por Cristo, não se contrapunha
à sua crítica feroz ao sistema maligno que subjaz
ao mundo (cf I Jo 5.19).
Apesar
de assumir a cultura judaica da época, Jesus não
poupa a crítica profética aos costumes e valores
de seus compatriotas. Em meio ao ambiente opressivo de preconceito
e discriminação que grassava na Palestina, Jesus
Cristo toma partido das crianças (Mt 19.13-15), das mulheres
(Mc 14.3-9) e dos excluídos e pobres em geral (Mt 11.4-6).
A grande crítica que se faz a Jesus por parte dos poderosos
da época é de que Ele só quer saber de
festa e com o pior tipo de pessoa: os excluídos (Lc 7.34).
Contrapor o sistema à ética do Reino é
assumir uma postura crítica frente a cultura do mundo.
Não há nenhuma incoerência em afirmar que
nossa posição frente a cultura deve ser de assimilação
e crítica. O que há é uma tensão
dialética, um constante movimento de pêndulo que
busca o equilíbrio entre viver neste mundo e sentir-se
forasteiro. A missão profética da Igreja é
estar no mundo (e não nas quatro paredes do santuário)
para trazer sal e luz ao que é insosso e obscuro (Mt
5.13-16). Trata-se de romper as barreiras rumo a Jesus afim
de não se conformar com este sistema de idéias,
com este século, com este ayon (Rm 12.1,2), mesmo correndo
os riscos de quem se aventura a viver na contramão.
Nosso grande desafio hoje, à beira da virada de milênio,
é assumir o equilíbrio. Experimentar, na prática,
a velha máxima apostólica: “julgai todas
as coisas, retende o que é bom” (I Ts 5.21). Em
nossa relação com a cultura, precisamos seguir
o exemplo de Cristo: encarnar-se, assimilar o que é bom,
sem, por isso, deixar de assumir uma postura crítica.
Você já pensou o quanto estamos perdendo em nossas
Igrejas ao deixar de resgatar elementos tipicamente brasileiros
como o samba, por exemplo? Na cultura brasileira, o samba assume
quase que uma função escatológica. “Vem
que passa teu sofrer, se todo mundo sambasse seria mais fácil
viver”, já dizia Chico Buarque. Está mais
do que na hora de traduzirmos o Evangelho nesta linguagem para
afirmar que, sem Jesus, a folia é apenas passageira.
Carregar sobre si esta postura dialética frente a cultura,
bailando entre a assimilação e a crítica,
fará com que nossa Igreja descubra mais um pouquinho
de sua identidade. E a partir daí, nossa admiração
pelos pregadores ferroviários não será
apenas pelo vigor crítico e profético com que
pregam e cantam. Mas porque o fazem com um pandeiro na mão.
Christian
David
([email protected])
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